domingo, 16 de junho de 2024

Antonio Prata | Nu, de Botas - Shakespeare nas Dunas

Por Antonio Prata

Férias de verão, minha mãe e meu padrasto alugaram uma casa em Arraial do Cabo para passarmos o mês de janeiro. Na véspera da viagem, arrumaram as malas, fizeram uma grande compra de supermercado e mandaram besuntar o Passat verde-musgo com óleo de mamona - suposta proteção contra a maresia que, até hoje, não sei se era uma particularidade da nossa família ou uma dessas bizarrices comuns no final do século XX, como passar Coca-Cola na pele antes de tomar sol ou fazer polichinelos nas aulas de educação física. Na manhã seguinte, com o porta-malas lotado, a lataria viscosa e os ânimos exaltados, pegamos a estrada.

Nossa casa ficava no alto de uma encosta, bem diante do mar. Tinha um quintal com pomar atrás, e uma varanda na frente, sombreada pela copa de uma amendoeira centenária. Todos os dias acordávamos cedo, tomávamos café da manhã na mesinha embaixo da amendoeira, e depois de uns cincos minutos ziguezagueando pela trilha do morro, chegávamos à praia, com as dunas de areia branca só para nós, meia dúzia de forasteiros e pescadores. Armávamos o guarda-sol, abríamos as cadeiras e esteiras e ali ficávamos, quase até o anoitecer.

Nas infinitas manhãs, enquanto minha mãe e meu padrasto liam, eu e minhas irmãs nos dedicávamos às típicas atividades de criança na praia: nadávamos, rolávamos na areia (chamávamos de "fazer croquete"), construíamos castelos, cavávamos buracos, realizávamos autópsias nos baiacus inchados trazidos pelo mar. Lá pelas três, meu padrasto fechava o livro: "E aí, quem quer uma birita?". Caminhávamos até uma birosca de pau a pique, comíamos pastéis, eles bebiam caipirinha e nós, Fanta Uva.

No finzinho da tarde, havia o arrastão. Eu e meu padrasto ajudávamos a puxar a rede - bem, ele ajudava, eu só ficava por ali, agarrado à velha corda azul, fingindo que meus pequenos músculos faziam alguma diferença na luta dos homens contra o mar. Quando a rede chegava, carregada - um borbulhante lago prateado, refletindo os últimos raios de sol -, recebíamos uma ou duas tainhas por nossa contribuição e íamos para casa, assá-las. Depois de jantar, eles nos liam alguma história dos irmãos Grimm ou do Monteiro Lobato e capotávamos, para acordar cedo no dia seguinte e começar tudo de novo.

Por mais divertidas que fossem nossas atividades praianas, um mês é muito tempo e era inevitável que em algum momento fôssemos visitados por aquele implacável companheiro da infância: o tédio. No final de uma manhã, lá pela terceira semana, cansados do mar, da areia, dos "croquetes", pastéis, picolés e barrigas dos baiacus, nos encarapitamos sob o guarda-sol e, emburrados, pusemos em prática a única estratégia que conhecíamos para espantar a infelicidade: azucrinar a vida dos adultos até que eles nos trouxessem alguma solução.

Minha mãe propôs que caminhássemos até as pedras, que fizéssemos um castelo, disse até que poderia ler algo dos irmãos Grimm ou do Monteiro Lobato, mas o tédio tem uma bunda imensa: quando assenta as nádegas sobre nossas cabeças, achata toda a circunferência do mundo conhecido; para escapar de seu adiposo domínio, só encontrando alguma atividade inédita, em mares nunca dantes navegados.Conhecendo intuitivamente o antídoto, minha meia-irmã bateu os olhos no livro que seu pai tentava ler e perguntou o que era. Romeu e Julieta, ele disse, e não o deixamos mais continuar a leitura: “Sobre o que é? Por que eles não podiam casar? Onde fica Verona? Dá pra chegar de carro? E de barco? Pra que lado? É antes ou depois da África?”.

Simplificando um pouco a linguagem, meu padrasto nos resumiu o começo da história: as famílias rivais, a festa à fantasia, o filho dos Montéquio, a jovem Capuleto, o amor proibido. Em cinco minutos, após mais de uma hora de lamúrias, havíamos ficado quietos e atentos. Não sei se instigado por nosso interesse ou simplesmente temeroso de que voltássemos ao tédio profundo, meu padrasto resolveu abandonar a versão resumida e começou o livro pelo começo - inserindo, aqui e ali, algumas notas de rodapé.

Daquele dia em diante, quando voltávamos da birita, entupidos de Fanta Uva e pastel, sentávamos nas esteiras e, até o sol se pôr, ouvíamos a continuação da história. Mais tarde, ao nos deitarmos na cama, não queríamos saber de feijões encantados ou reinações de Narizinho: só nos interessava o futuro do casal.

Hoje, acho que entendo o porquê do nosso interesse por Romeu e Julieta. Filhos de pais recém-separados, não nos eram nada distantes, perdidas no século XVI, situações como “amor impossível”, “relações inconciliáveis”, “a casa dos Montéquio” e “a casa dos Capuleto”. Por mais civilizados que tivessem sido os divórcios do meu pai e da minha mãe, do meu padrasto e de sua ex-mulher, em algum lugar devíamos nos solidarizar com dois jovens cujas vidas eram afetadas pelas rixas de seus antecessores. Ou, talvez, nem precisássemos ir tão longe. Afinal: o que é a infância senão uma sequência de desejos cerceados pelos adultos?

Os dias foram se passando e nós ficando cada vez mais ligados ao livro. Para alongar a narrativa, minha mãe e meu padrasto se aprofundavam em detalhes, descreviam roupas e cenários, cantarolavam as músicas dos bailes, assoviavam os pios dos passarinhos, inventavam comidas, animais e plantas da floresta. Embora percebêssemos a artimanha e reclamássemos às vezes - “pula, pula, isso é sobre!”, eu dizia -, eles conseguiram levar Romeu, Julieta e as três crianças firmes e fortes até o fim das férias.

No penúltimo entardecer, subimos para casa com o coração na boca: o mundo tramava contra o amor proibido, Romeu havia sido obrigado a fugir para Mântua, Julieta estava prometida a Páris, mas o plano do frei Lourenço era excelente! Daria à moça um falso veneno, que a faria parecer morta. Romeu a encontraria no jazigo dos Capuleto, a acordaria do sono profundo, fugiriam para longe de Verona (Arraial do Cabo, talvez?) e seriam felizes para sempre. Não era assim, afinal, que terminavam as histórias?

Eis o que se perguntavam meu padrasto e minha mãe, vez após outra, naquela insone noite de verão. Como sair da arapuca em que haviam se colocado? Deveriam profanar Shakespeare, censurando o final, fazendo, talvez, com que a carta de Julieta chegasse a Romeu via pombo-correio, em vez de viajar no bolso de um emissário? Cometeriam um hediondo anacronismo colocando ao lado da sepultura um providencial orelhão, cujo toque, no momento em que Romeu erguesse a adaga, mudaria, deus ex machina, os rumos da história? Ou o correto seria seguirem fiéis ao enredo, Shakespeare é Shakespeare, a arte está acima de tudo, não se pode esconder a verdade das crianças, e, no fim das contas, elas sairiam fortalecidas da experiência?

Lembrem-se, era início dos anos 80. Maio de 68 estava mais próximo de nós que a obrigatoriedade de cadeirinha para bebês no banco de trás dos carros, a discussão, portanto, sobre o que seria mais danoso às crianças - a violência da história ou da mentira - entrou noite adentro, escorando-se em Harold Bloom e Paulo Freire, Bakhtin e Piaget, Nietzsche,  Freud e sabe-se lá mais quem. Já estava amanhecendo quando chegaram a uma conclusão.

Pela última vez, tomamos café sob a amendoeira, descemos a trilha até a praia, cruzamos as dunas, armamos acampamento. Lá pelas três, depois da birita, como de costume, sentamos em volta dos dois, prontos para ouvir o aguardado final de Romeu e Julieta.

Não lembro quem contou, se minha mãe ou meu padrasto. Lembro é de um frio polar no estômago, de um clarão no céu, do mundo revolto como as entranhas de um baiacu. Minha irmã mais nova perguntava, lívida, ainda sem acreditar, “mãe, mãe, que que é adaga?!”, minha meia-irmã caminhava a esmo, “nããão! Romeu! Nããão! Julieta!”, os adultos atrás, atarantados como vaqueiros no estouro da boiada, “mas olha, as famílias fizeram as pazes!”, “olha, é só uma história, é de mentirinha! Quem aí quer um picolé?!”. “Mortos! Mortos!”, gritávamos, rolando pelas dunas, areia grudando no rosto, pequenos e trágicos croquetes pranteando o casal de Verona, que morria junto ao último sol daquele verão.

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Boa leitura!

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