O evento "Admiraram-se de tão estranha forma de loucura: Dom Quixote e o nascimento da ideia moderna de Justiça", ocorreu no dia 01 de outubro de 2024, tendo sido organizado pela Comissão de Direito e Literatura do IASP (Instituto dos Advogados de São Paulo). O palestrante, José Garcez Ghirardi nos brindou com uma brilhante exposição crítico-reflexiva, acerca da obra, de seu contexto histórico, bem como sob sua ótica jurídica.
Na ocasião, estiveram presentes o presidente da comissão, Ricardo Peake Braga; a vice-presidente da comissão, Marina Bevilaqua de La Touloubre; o secretário geral, Maurício Felberg e o presidente do IASP, Renato Silveira.
Braga realizou a abertura do evento, saudando a todos e afirmando, com razão, que todos aguardamos ansiosos todos os meses para a chegada dos eventos literários, recheados com palestrantes de alto nível.
A seguir, Silveira cumprimenta os membros da mesa e os presentes, tecendo comentários sobre a tradição e a modernidade do IASP. Destaca também a relevância da literatura para o Direito. Lembra que estudou na Espanha em Toledo e no bosque de pedra de Salamanca, onde há menções a Dom Quixote. Por fim, agradece à comissão e ao palestrante.
Então, Marina dá boa tarde a todos e apresenta o palestrante. Garcez é professor da FGV, na graduação e na pós-graduação. A vice-presidente, assim, relembra que, em 01 de outubro de 1946, foram encerrados os julgamentos de Nuremberg, em que, na ocasião, houve a busca pela Justiça, assim como em Dom Quixote, que buscava incansavelmente a Justiça. Sem mais delongas, passa a palavra ao palestrante.
Inicialmente, Garcez cumprimenta todos os presentes e a comissão e dá início aos trabalhos.
Explica que fará algumas provocações, para trocar ideias com os presentes. Esclarece que o que tomamos por loucura varia com o tempo. A estranha forma de loucura de Dom Quixote nos ajuda a compreender a loucura. Assim, a importância do tempo para discutir literatura. A seguir, explicita a dualidade humana, presente entre Quixote e Sancho. O primeiro, mais medieval. O segundo, mais moderno. No sentido medieval não há diferença entre o papel e o indivíduo, há um sentido moral relacionado à justiça, o cavaleiro andante da triste figura não tem desejo. Ele levanta os olhos a Deus, para saber o que fazer. Por outro lado, Sancho é a subjetividade moderna. Quixote vive num mundo encantado, sendo visto como ridículo, fanático na época. Pode-se dizer que nossa vida é maior do que nós mesmos. Sancho tem nome e sobrenome. Tem bom senso, é realista, demonstra a racionalidade moderna, vive num mundo desencantado.
Com efeito, há, como já dito, uma dualidade entre os dois. Duas noções de ser humano opostas. O que nos leva a questionar o que significa a vida humana. Há um sentido? Existe, assim, uma dualidade interna/subjetiva e outra externa/política - corpo x espírito. Ocorre, então, uma luta entre espírito e corpo, uma tensão, sem antagonismo e ainda uma noção de justiça - procedimental x substantiva. Daí o que norteia o homem... Deus, uma coisa só! Homem e Deus. Porém, a modernidade rompe com a encarnação, através das guerras de religião. Acontece, pois, com os reis do modernismo uma ruptura entre direito e justiça, surgindo uma nova forma de ver a realidade.
Desse modo, Sancho representa a modernidade, o pragmatismo, o direito buscando a ordem procedimental, o "rule of law". Enquanto isso, Quixote representa o medieval, é ridicularizado, considerado um fracasso, tem uma forma diferente de compreender o direito e a justiça, tem um ideal de busca pela justiça. No entanto, quando morre sentimos que algo muito precioso se perdeu.
Adiante, o palestrante traz considerações sobre a pós-modernidade. Lembra da impaciência com os procedimentos, da busca pela justiça social, de problemas em juntar direito e justiça. E problematiza... Como juntar isso com as pós-verdades.
Com isso, é possível dizer: "Ser Quixote é Ser Sancho!" - ou seja, não deve haver oposição, deve haver sim um diálogo entre os dois, entre corpo e espírito. Na realidade, o ser humano como "um todo em tensão".
Falando em espírito, vale lembrar que as expressões "espírito da lei", "espírito da constituição" se relacionam com a ideia de encarnação de Cristo. Também que houve o debate entre Lutero e Erasmo, com relação à liberdade para escolher o bem. Para o primeiro, não temos essa liberdade. Já para o segundo, sim, temos essa liberdade. Até o renascimento desejo não é parte da natureza humana. Após essa época, a natureza humana passa a ter desejo.
Dessa forma, retomando, Sancho representa a subjetividade moderna; enquanto, Quixote, a subjetividade medieval. É necessário, portanto, um diálogo entre a dualidade, com duas noções de seres humanos.
Em frente, o palestrante afirma que toda a teoria jurídica moderna se baseia na "vontade", como exemplo, a vontade de contratar.
Para ele, Quixote é o anti-moderno, fazendo uma crítica social à época dos nobres.
Tratando sobre nobres (elites), há também o povo, daí outra dualidade.
Porém, caminhando ao final da exposição, reflete que Sancho e Quixote são mais que uma dualidade. Na verdade, são duas formas matriciais diferentes de compreender o ser humano. Daí a justiça procedimental e substantiva. No contexto, há uma nostalgia de tempo passado e ainda um desafio pós-moderno, com a tentativa de retomar valores. Infelizmente, para o palestrante não é possível conciliar a verdade com a justiça. E traz dois poemas... um de Ferreira Gullar e outro de Vinícius de Moraes.
Finalmente, como na obra há uma dualidade entre elites e povo, trago aqui, para encerrar, um poema de minha autoria...
Colisão do Metrô
Mar de Pedras,
Milhões de janelas,
Manhã de quarta-feira.
Ainda escuro,
Trabalhador parte ao ofício,
Com café preto na barriga vazia,
Para ganhar pão de cada dia.
Com olhos cerrados,
No ônibus segue sentado.
Mais tarde, em pé equilibrado,
É jogado de repente no chão,
Ao choque dos trens do metrô.
Ferido sem gravidade,
É atendido pelo Samu,
Mas perde dia de trabalho…
E farinha com tutu para botar na mesa!
Nenhum comentário:
Postar um comentário