quinta-feira, 28 de novembro de 2024

Conjur | Kafka e as VPIs

Recentemente, reli um dos livros que mais marcaram minha adolescência (época em que, não me orgulha assumir, era um leitor muito mais voraz do que hoje): “O Processo”, do escritor Franz Kafka.

Franz Kafka/Wikimedia Commons

A obra narra a história de Josef K. (ou simplesmente “K”), funcionário de uma instituição financeira que, da noite pro dia, é dragado para a condição de réu em um processo sem saber que crime teria cometido ou que norma teria violado. As primeiras linhas marcam o compasso da obra: “Alguém certamente difamara Josef K., pois sem ter feito nada de mau, certa manhã ele fora detido”. 

Franz Kafka/Wikimedia Commons


A partir daí, a agonia só aumenta, à medida que o personagem principal tenta de todas as maneiras descobrir qual a razão do tal “processo”, numa teia claustrofóbica de figuras e situações pitorescas que ilustram o aparato burocrático daquela justiça imaginária.

Num mundo distópico onde “a defesa em si não é garantida por lei, apenas tolerada”, como efetivamente se defender se não se sabe qual é a acusação? Como exercer o sacrossanto direito à ampla defesa se desconhecido o crime?

Numa das passagens que mais me marcaram, o personagem do moribundo advogado explica a “K” que “no geral, o processo não é apenas mantido em segredo para o público, mas também para os réus. É claro que isso é feito apenas na medida do possível; no entanto, a medida do possível é bastante ampla”.

Lembro que, à época (quando eu sequer era estudante de Direito), senti que aquela obra flertava com o absurdo. Se transportada para um quadro (afinal de contas, escrever é pintar com as palavras, como lembrava Clarice Lispector), certamente seria uma obra surrealista de Dalí ou Miró.

Spacca

Para entender aquele universo peculiar, era necessário deixar de lado a realidade e aceitar aquela premissa ilógica.

Aí sim, a obra faria algum sentido.

Isso porque, para nós brasileiros que vivemos sob o confortável manto do Estado democrático de direito, é inverossímil a existência de um processo sem os imaculados princípios da publicidade, do contraditório e da ampla defesa.

Ser acusado em um processo ao qual não se tem acesso? Provas sendo produzidas contra um cidadão em um procedimento secreto?

Para criar uma obra tão onírica, talvez Kafka tenha se inspirado no regime monárquico de sua terra natal, o antigo Império Austro-Húngaro, ou quem sabe em um dos tantos regimes de exceção que povoaram nossa história.

Uma realidade fantástica, insólita, muito distante do que eu conhecia à época, e ainda mais do que conheço agora, atuando há mais de 20 anos como advogado.

Será?

Voltando ao nosso tempo

Saltemos 100 anos na história e vamos analisar nossa legislação atual.

O artigo 5º do Código de Processo Penal, em seu parágrafo 3º, dispõe que qualquer pessoa do povo que tiver conhecimento da existência de infração penal pode comunicar o fato a autoridade policial e esta, antes de instaurar o competente inquérito, deve verificar a procedência das informações.

A razão é que, por óbvio, a tal “denúncia” pode ser infundada ou desprovida dos mais elementares indícios de crime.

Verificação de procedência de informação

É dai que nasce a VPI (Verificação de Procedência de Informação),  mecanismo concebido em seu nascedouro para, antes da instauração do inquérito propriamente dito, reunir elementos e coletar informações. A partir daí, será analisado se há ou não indícios suficientes a justificar a abertura do inquérito.

Trata-se de um procedimento precário, simples e informal de apuração fática, uma espécie de filtro natural de absurdos, criado para servir de óbice à banalização da abertura de inquéritos policiais.

Nessa etapa, como corolário lógico de sua própria natureza, não são permitidas medidas mais invasivas, como quebra de sigilo de dados, busca e apreensão, entre outras.

Um bom exemplo dos limites da VPI foi dado pelo próprio Supremo Tribunal Federal no julgamento do RE 1.055.941/SP, onde restara decidido que o compartilhamento de Relatórios de Inteligência Financeira (RIF’s) dependeria da existência de “procedimentos formalmente instaurados e sujeitos a posterior controle jurisdicional”hipótese na qual não se enquadra o gênero de verificação de procedência.

Esse tipo de utilização da VPI desvirtuaria o espirito da lei, até porque, por óbvio, “verificação” e “investigação” não são sinônimos no nosso vernáculo.

Se fosse diferente disso, qualquer cidadão poderia ter sua vida devassada mediante mera denúncia, ainda que anônima, ainda que despida de fundamento, ainda que possuísse a solidez de uma gelatina.

Some-se a isso o fato de que, nessa etapa preliminar, o investigado sequer tem a ciência de tal procedimento, numa espécie de inquérito policial sigiloso e ilegal, um processo invisível, onde suas informações mais sensíveis podem vir a ser escrutinadas sem a possibilidade do imaculado exercício do contraditório e da ampla defesa.

Virando retrocesso

Mas o que deveria ser um avanço tem se mostrado um retrocesso.

O que vem ocorrendo, na prática, em alguns casos, é a desvirtuação desse valoroso instituto. Autoridades policiais, desrespeitando reiteradas decisões das Cortes Superiores, têm se utilizado das VPIs para reunir indícios de forma sigilosa, utilizando-os contra o cidadão.

Sem conhecer os elementos de prova que estão sendo colhidos, o cidadão não tem a oportunidade de contestar ou apresentar sua versão dos fatos, o que, inegavelmente, compromete a própria legitimidade das investigações, além de deixá-lo vulnerável e impotente na elaboração de sua defesa.

Trocando em miúdos, o fato é que, usada corretamente (apenas para colher informações preliminares e afastar abusos), a VPI é um avanço na legislação penal; usada de forma errada, arbitrária, pode servir como ferramenta de abuso, corrompendo as garantias fundamentais estampadas na nossa Constituição.

Como diz o ditado, o que separa o remédio do veneno é a dose.

Reler “O Processo” nos dias atuais me trouxe uma reflexão um tanto perturbadora. Será que aquela obra era apenas o fruto criativo de um gênio literário ou teria Kafka, à frente do seu tempo, tentado alertar as gerações futuras para o risco de que, sem o devido respeito às instituições, cada cidadão seria um potencial “Josef K”?



Isto É Dinheiro | "A Montanha Mágica": cem anos depois, clássico da literatura sobre o mundo à beira da guerra continua atual

 



Uma sociedade dividida, medos existenciais, doença, morte, o fantasma da guerra: 100 anos após ser lançado, clássico da literatura de Thomas Mann parece assustadoramente atual.Os quartos são confortáveis, a vista é estupenda, a comida, deliciosa. Aconchegados sob cobertores de lã, os abastados hóspedes passam o dia nas espreguiçadeiras das varandas, em repouso.

Bem-vindos ao Berghof, um sanatório de luxo para doenças respiratórias, isolado nos Alpes Suíços, onde pacientes de tuberculose apostam na cura pelo ar fresco das montanhas. Esse é o cenário escolhido pelo autor alemão Thomas Mann (1875-1955) para seu romance A Montanha Mágica (Der Zauberberg).

A história começa no ano de 1907: prestes a iniciar a carreira de engenheiro naval, Hans Castorp, filho de um comerciante de Hamburgo, vai visitar o primo doente no Berghof. Originalmente, só pretendia passar lá três semanas, que no entanto acabam virando sete anos.

O curioso é que o próprio Castorp está saudável, “mas ele é como que sugado pela vida no sanatório”, explica o especialista em literatura Kai Sina. “Os pacientes, seus debates filosóficos e seus costumes, as rígidas rotinas de saúde, as refeições luxuosas e a obsessiva medição da febre: ele se torna parte desse mundo.”

Microcosmo de uma Europa em crise

O sanatório totalmente isolado é um microcosmo que revela a crise de uma sociedade em transformação. A virada para o século 20 é uma época de reviravoltas radicais na Europa: a industrialização modificou a vida fundamentalmente, a ciência coloca cada vez mais em xeque as certezas religiosas, e movimentos nacionalistas e socialistas avançam.

A perda dos valores tradicionais e a desorientação resultam em tensões e agressão, também entre a ilustre roda do Berghof: “Estava no ar”, adverte o romance. Hans Wisskirchen, presidente da Sociedade Thomas Mann, analisa esse sentimento: “Sente-se um tremendo mal-estar, um medo do futuro. O pessoal de serviço é insultado, há pancadarias, nascem as ideias mais loucas, as pessoas literalmente perdem as estribeiras.”

Se não fosse a linguagem antiquada, daria para pensar que o autor é do século 21. Pois também hoje em dia se percebe por toda parte “a grande irritabilidade, o ponto de ruptura”, compara Caren Heuer, diretora da Casa Buddenbrook, a antiga residência dos avós do escritor em Lübeck. “Basta sintonizar um talkshow de domingo à noite qualquer. A gente vê como os participantes se interrompem, não se escutam. O que importa é despejar opiniões.”

Também o herói de A Montanha Mágica encontra defensores fanáticos das mais diversas ideologias, que se combatem ferrenhamente. De um lado está o humanista Lodovico Settembrini; de outro, o jesuíta ultrarreacionário Leo Naphta. Em seus diálogos, liberalismo e crença no progresso se chocam com o entusiasmo por um regime totalitário como única forma correta de sociedade.

Ambos competem pelas atenções de Castorp, que se vê dividido entre as visões de mundo conflitantes. No fim, há um duelo a pistola entre os dois rivais, em que Settembrini atira intencionalmente para o alto. Incapaz de suportar a desonra, Naphta se suicida. E a onda de violência se desencadeia.

A Montanha Mágica foi “um acaso”

Ao escrever A Montanha Mágica, o escritor natural do norte da Alemanha tomou como modelo sua própria mutação política. Ele colocara as primeiras linhas no papel em 1913, só concluindo 12 anos mais tarde, interrompido pela Primeira Guerra Mundial. De início, era belicista convicto, explica Sina.

“Thomas Mann se deixou contagiar pela euforia pró-guerra que então ocupava tantos intelectuais, artistas e autores. E em 1918, percebeu que lutara do lado errado.” Daí em diante, tornou-se um dos opositores mais determinados do fascismo.

“O que mais me fascina em Mann é a coragem de autorrevisão, sua disposição honesta e íntegra de colocar repetidamente no banco de testes posicionamentos antes tomados. E A Montanha Mágica ilustra justamente isso.”

Instituída em 1918, a República de Weimar foi a primeira tentativa de uma verdadeira democracia parlamentar na Alemanha, encerrada em 1933 com a tomada do poder pelos nazistas.

Tudo isso reverbera no romance de Mann: nesse mesmo ano ele abandonou o país, indo para a Suíça com a família. Expatriado em 1936, de 1938 a 1952 morou nos Estados Unidos. Em seguida retornou à Suíça, e batalhou pela tolerância e a dignidade humana até sua morte, em 1955.

Difícil acreditar que de início o autor só pretendia escrever um conto humorístico, como contraparte à novela Morte em Veneza. Ele escolheu um sanatório como local da trama porque em 1912 sua esposa, Katia, teve que passar três semanas numa clínica do gênero, devido a um diagnóstico de tuberculose.

“Isso é que é louco, que histórias assim tão grandes – sobre as quais a gente ainda fala hoje, e pensa que ele tenha ficado pensando anos a fio ‘como é que eu vou fazer isso’ – que elas tenham sido acaso”, comenta Wisskirchen, da Sociedade Thomas Mann.

Homoerotismo, guerra, humor

O resultado foi um romance do século de mais de mil páginas. Mas A Montanha Mágica trata não só de ideologias, e sim também da morte – afinal, a maioria dos internos só saía do sanatório no caixão (na época não se usavam antibióticos). E, por contraposição, trata também uma fome desenfreada de viver e, é claro, do amor.

Hans Castorp se apaixona pela misteriosa russa Claudia Chauchat, que lhe concede uma única noite de amor. Ela lhe lembra um camarada da escola, com seus “olhos quirguizes”. Para o crítico literário Kai Sina, aí Mann alude a suas próprias inclinações homoeróticas.

“A questão de o que é um homem, o que é uma mulher, o que é masculino, o que é feminino e o que, em cada caso, é percebido como eroticamente atraente: aqui, tudo isso está como que flutuando, de certo modo.”

Publicamente, o futuro Nobel da Literatura era um digno cidadão heterossexual, com esposa e seis filhos. A única possibilidade de viver seu desejo por outros homens – se havia alguma – era em segredo. E em seus livros.

Talvez Castorp tivesse esperanças de novos favores da bela russa, mas aí a Primeira Guerra Mundial irrompe, e os pacientes debandam do Berghof. O protagonista se alista num regimento de voluntários, seu rastro se perde no campo de batalha. Ao fim de A Montanha Mágica, Mann pergunta: “Será que dessa festa mundial da morte […] um dia o amor emergirá?”

Publicada pela primeira vez em alemão em novembro de 1924 e traduzida em 27 idiomas, a obra se tornou um clássico literário mundial, que nada perdeu de sua força e pertinência. Isabel García Adánez, que a adaptou para o espanhol, resume: “Um século se passou, e nós continuamos sendo os mesmos, e resolvemos conflitos através de guerras.”

Para quem tenha dúvida sobre a atualidade do texto, a tradutora acrescenta: “Trata-se de coisas muito sérias, mas o livro, em si, é uma experiência prazerosa. E não é preciso três títulos de doutor para ter acesso a Thomas Mann: ele é cheio de ironia e humor.”

Fonte: Isto É Dinheiro.

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Saiba mais!

Boa leitura!

Revista Bula | Crime e Castigo: Dostoiévski como uma obrigação

 



Algumas narrativas são arquitetadas não apenas para entreter ou encantar, mas para tatuar a consciência de quem as encontra, talhando marcas que resistem ao tempo e às releituras. Entre essas obras, “Crime e Castigo”, a intricada história do jovem que desafia leis humanas e divinas, concebida pelo mestre russo Fiódor Dostoiévski, figura como um rito de passagem literário, comumente enfrentado na juventude e raramente abandonado ao esquecimento. É um texto que não só convida, mas arrasta o leitor a um confronto direto com as ambiguidades morais, as zonas de sombra do espírito humano e as rachaduras da justiça, revelando, com precisão cortante, que o peso das escolhas é também o peso da existência.

Crime e Castigo
Crime e Castigo Fiódor Dostoiévski (Editora 34, 592 páginas, tradução de Paulo Bezerra)

A obra que emerge da pena do grande autor russo transcende as barreiras do idioma e da geografia, consolidando-se como uma das narrativas mais lidas e revisitadas da história literária universal. Sua onipresença nas estantes e nas almas leitoras ao redor do mundo não é um acidente: ela pulsa com uma vitalidade que resiste às épocas e às modas, questionando não só a moralidade individual, mas também os fundamentos da convivência humana. Ler essa história é adentrar um território onde o tempo se dissolve, e o questionamento ético se torna atemporal, um espelho que reflete tanto a sociedade do século 19 quanto as inquietações mais profundas do homem contemporâneo.

As questões levantadas pelo romance dialogam com as camadas mais densas da experiência humana, explorando dilemas que não pertencem a uma cultura ou a um contexto específico, mas que habitam o âmago da existência. O que é justiça? Qual é o limite entre a liberdade de agir e o dever de respeitar o outro? Seria o sofrimento uma forma de expiação ou apenas um reflexo da arbitrariedade do mundo? A história do jovem atormentado que ousa desafiar as convenções éticas e legais ergue-se como um verdadeiro tratado sobre as fragilidades e forças da condição humana, onde as respostas parecem menos importantes do que as perguntas, e o leitor se vê, invariavelmente, implicado no labirinto moral que a obra desenha.

O ponto de maior tensão moral, no entanto, ecoa como um dilema filosófico universal: vale a pena cometer um crime em nome de um bem maior, seja para salvar a si mesmo ou, em uma ambição ainda mais ousada, para redimir a humanidade inteira? A narrativa não oferece respostas claras, nem se propõe a absolver ou condenar, mas coloca o leitor diante de um espelho distorcido, onde a linha entre o justo e o perverso se desfaz, obrigando-o a ponderar os limites da ética e da redenção. A grandeza do texto reside justamente nessa recusa em entregar verdades prontas, mas em confrontar o público com uma experiência literária que o obriga a medir o peso de suas próprias convicções.

Crime e Castigo

Em um cenário cinzento e sufocante, na São Petersburgo do século 19, um jovem estudante, empobrecido e atormentado, concebe um plano audacioso que desafia os alicerces éticos da sociedade. Raskólnikov, mergulhado em um abismo de racionalizações, decide assassinar Aliena Ivanovna, uma velha sovina que ele considera um parasita social, justificando o ato como uma espécie de sacrifício moral necessário para um bem maior. O crime, no entanto, não segue o curso frio e calculado de sua teoria. Em um momento de caos e descontrole, ele também tira a vida de Lizaveta, a irmã inocente da velha, e é nesse instante que a clareza intelectual do jovem começa a desmoronar, substituída por um turbilhão de culpa e paranoia.

Após o duplo homicídio, Raskólnikov não encontra a libertação ou a superioridade moral que havia idealizado, mas sim o peso esmagador de um fardo existencial que permeia cada aspecto de sua vida. Em uma trama repleta de encontros que oscilam entre o acaso e a necessidade, ele cruza caminhos com personagens que personificam diferentes respostas aos dilemas morais e espirituais que o assombram. Sonia Marmeládova, a jovem prostituta de fé inabalável, emerge como uma figura de redenção, enquanto Porfíri Petrovitch, o astuto investigador, representa a força inevitável da justiça que se aproxima lenta, mas inexoravelmente. Entre os dois extremos, Raskólnikov é arrastado por diálogos e confrontos que testam a sua resistência mental e espiritual.

Enquanto o protagonista afunda cada vez mais na espiral de sua própria consciência, o romance amplia o alcance de sua narrativa, conectando os dilemas individuais de Raskólnikov a questões sociais, filosóficas e religiosas mais amplas. A degradação de sua mente reflete a decadência moral de uma sociedade marcada pela desigualdade, pela alienação e pela desesperança. Ao mesmo tempo, as interações com Sonia e outros personagens começam a sugerir que a redenção pode ser possível, mas apenas através do enfrentamento direto do sofrimento e do reconhecimento das próprias falhas. Cada página parece perguntar ao leitor: seria possível separar o crime do castigo?

Na conclusão, o desfecho não traz a catarse convencional de uma absolvição ou punição clara, mas um lento e doloroso processo de aceitação. Raskólnikov confessa seus crimes e se entrega, iniciando uma jornada de purificação. É nos confins de sua solidão que ele começa a vislumbrar uma nova forma de viver, guiado pela fé de Sonia e pelo peso transformador da penitência. No entanto, Dostoiévski deixa claro que esse recomeço não é uma conclusão, mas apenas o início de um longo e incerto caminho, onde o crime e o castigo não se anulam, mas se entrelaçam em uma dança perpétua.

Joseph Frank, no terceiro volume de sua monumental biografia sobre Dostoiévski, “Os Anos Milagrosos: 1865-1871”, observa que “Crime e Castigo” se destaca entre os romances do autor justamente por transcender, de forma mais enfática, o contexto histórico e cultural da Rússia. Para Frank, embora Dostoiévski nunca abdique de ancorar suas histórias em uma Rússia vibrante e contraditória, esta obra não possui a mesma vocação de radiografia nacional que caracteriza “Os Irmãos Karamázov”. Aqui, o drama se desloca para o âmago da condição humana, um território em que questões como culpa, expiação e a tensão entre o bem e o mal ultrapassam fronteiras culturais. Se “Os Irmãos Karamázov” é um retrato do “espírito russo”, como Frank sugere, “Crime e Castigo” se projeta como um espelho universal, refletindo inquietações que são, por essência, intemporais e transnacionais.

Ainda segundo Frank, um dos elementos mais marcantes em “Crime e Castigo” é o espaço urbano como palco e catalisador da trama. Nas palavras do biógrafo, “São Petersburgo não é apenas o cenário da história, mas um personagem sombrio que amplifica a solidão de seus habitantes e sublinha as disparidades brutais entre pobreza e riqueza”. Essa análise ressalta como Dostoiévski constrói a cidade como uma força opressiva e sufocante, com suas ruas estreitas, cortiços claustrofóbicos e o movimento frenético das multidões. É nesse espaço alienante que Raskólnikov se isola cada vez mais, não só do mundo exterior, mas também de si mesmo, enquanto a cidade parece compactuar com seu colapso moral e psicológico.

Frank também destaca o contraste social onipresente na narrativa, que revela as fissuras de um mundo urbano em rápida transformação. Enquanto a São Petersburgo de Dostoiévski é um microcosmo de desigualdade, onde mansões opulentas convivem lado a lado com becos imundos, ela também serve como um reflexo da modernidade e do preço que ela cobra de seus habitantes. Para Frank, “o verdadeiro antagonista do romance não é a lei ou a justiça, mas a própria cidade, cuja indiferença agrava o desespero e a alienação do protagonista”. Em suas observações, o biógrafo ilumina como a solidão urbana se torna um elemento central da experiência de Raskólnikov, transformando São Petersburgo em uma prisão a céu aberto, que simultaneamente o acolhe e o condena.

Crime e Castigo

Mikhail Bakhtin, em seu estudo “Problemas da Poética de Dostoiévski”, destaca os diálogos entre Sonia e Raskólnikov como momentos de rara densidade simbólica e filosófica na literatura mundial. Para Bakhtin, essas conversas vão muito além do simples intercâmbio de palavras: elas se configuram como um confronto entre mundos espirituais. Sonia, com sua fé humilde e inabalável, e Raskólnikov, atormentado por sua soberba intelectual e moral, não apenas debatem questões éticas, mas personificam, em sua interação, a tensão universal entre a redenção e o niilismo. A leitura de Sonia é um momento de “diálogo absoluto”, onde a narrativa transcende a individualidade dos personagens e se abre para uma dimensão universal de sofrimento, expiação e ressurreição.

Essa dimensão simbólica é intrinsecamente ligada ao conceito de polifonia, que Bakhtin identifica como uma das maiores inovações de Dostoiévski. O crítico afirma que “Crime e Castigo” não é um romance unívoco, mas uma sinfonia de vozes autônomas, cada uma portadora de uma visão de mundo irreconciliável. Os diálogos entre Sonia e Raskólnikov exemplificam essa qualidade polifônica, onde nenhuma voz domina ou silencia a outra, mas ambas coexistem em uma tensão dinâmica que desafia a síntese. O que emerge, para Bakhtin, não é a imposição de uma verdade singular, mas a multiplicidade de verdades que se cruzam e se chocam, sem jamais se anularem completamente.

A polifonia do romance, como Bakhtin argumenta, estende-se a todos os seus personagens, cujas vozes não servem como meros instrumentos narrativos, mas como entidades autônomas que resistem à autoridade do autor. Essa autonomia é o que permite que cada personagem, desde o astuto Porfíri Petrovitch até a trágica figura de Marmeládov, expresse sua própria visão de mundo, criando um caleidoscópio ético e filosófico. Para Bakhtin, essa estrutura única é o que transforma “Crime e Castigo” em uma obra profundamente dialógica, onde a verdade não é um ponto fixo, mas um processo em constante movimento, moldado pela interação das vozes que compõem o texto.

Ao enfatizar a polifonia, Bakhtin nos convida a ver “Crime e Castigo” não apenas como uma narrativa, mas como um espaço onde a linguagem se torna um campo de batalha filosófico. Os diálogos entre Sonia e Raskólnikov são, nesse sentido, emblemáticos: não há resolução fácil ou hegemonia moral, mas um confronto contínuo e vibrante entre perspectivas irreconciliáveis. Essa pluralidade de vozes e ideias é o que confere ao romance sua vitalidade inesgotável, garantindo que ele permaneça, como Bakhtin conclui em seu estudo, “um texto sempre inacabado, sempre aberto à renovação e ao diálogo com novas gerações de leitores”.

A biografia de Dostoiévski é um espelho estilhaçado, cujos fragmentos reverberam em cada página de sua obra. Poucos autores transformaram suas experiências pessoais em matéria-prima literária com a intensidade que ele fez. Sua condenação à morte, seguida de um indulto de última hora, marcou não apenas sua visão de mundo, mas também a estrutura de sua escrita, impregnada de tensões extremas entre a redenção e o desespero. Joseph Frank argumenta que o encontro de Dostoiévski com o patíbulo e, mais tarde, com o trabalho forçado na Sibéria, foi mais do que um episódio transformador: foi o alicerce de sua compreensão do sofrimento humano como via para a transcendência. Essa vivência se reflete em “Crime e Castigo”, onde a linha entre a queda e a salvação é tênue, quase imperceptível, e a expiação só emerge do mais profundo abismo moral.

Mas as relações entre vida e literatura em Dostoiévski não se limitam às grandes tragédias. Sua luta contra a epilepsia, suas crises financeiras e sua convivência com a miséria urbana em São Petersburgo informaram a construção de personagens e cenários com uma autenticidade forte. Raskólnikov, Marmeládov e Sonia, em particular, não são apenas criações ficcionais, mas extensões do mundo real que Dostoiévski habitava e observava. Bakhtin ressalta que o autor não apenas registrava suas vivências, mas as transfigurava em diálogo filosófico e existencial, criando obras que, embora enraizadas no particular, alcançam o universal. A vida de Dostoiévski não é apenas o contexto de sua literatura, mas a fonte inesgotável de suas reflexões, transformando o drama pessoal em épico humano.

A necessidade de escrever para sobreviver foi uma constante na vida de Dostoiévski, cuja carreira literária esteve sempre em tensão com a precariedade financeira. Endividado, perseguido por credores e em luta para sustentar sua família, ele transformou a pressão material em um motor criativo. Essa demanda não apenas moldou a forma e o ritmo de sua produção, mas também impregnou seus textos de uma urgência palpável. Mais uma vez com Joseph Frank, observamos que a escrita de Dostoiévski era, muitas vezes, uma questão de vida ou morte financeira, e que a profundidade de suas obras não foi prejudicada, mas, paradoxalmente, amplificada por essa pressão externa. O sofrimento pessoal e as adversidades, em vez de limitar sua criatividade, deram origem a narrativas de uma complexidade psicológica e filosófica inigualáveis.

Crime e Castigo

O caso de “Crime e Castigo” é emblemático nesse sentido. Publicado em formato seriado na revista “Russkii Vestnik”, o romance foi encomendado com rigorosas restrições editoriais. Dostoiévski não apenas teve de seguir um cronograma apertado, mas também adaptar os capítulos ao espaço previamente estipulado pelo contrato. Essa limitação técnica, longe de comprometer a qualidade da obra, revela a maestria do autor em trabalhar sob condições restritivas. Cada capítulo, cuidadosamente equilibrado, mantém o ritmo e a tensão narrativa, mostrando que o formato imposto foi não um obstáculo, mas um desafio criativo. Como argumentam muitos críticos, incluindo Bakhtin, a restrição formal muitas vezes serve como catalisador para a invenção, forçando o artista a encontrar soluções criativas que de outra forma poderiam passar despercebidas.

A encomenda como origem de uma obra de arte está longe de ser uma anomalia. Na verdade, a história da cultura é repleta de criações monumentais feitas sob demanda. Michelangelo pintou o teto da Capela Sistina a pedido do Papa; Bach compôs cantatas para missas específicas; Shakespeare escreveu peças para atender às necessidades de um público ávido e de patronos exigentes. “Crime e Castigo” demonstra que a circunstância da encomenda não é um impeditivo para a profundidade estética e filosófica. Pelo contrário, reforça a ideia de que grandes artistas têm a capacidade de transformar limites externos em combustível para a criação, provando que o gênio não é apenas uma força espontânea, mas também um talento para transcender circunstâncias adversas.

A linguagem de Dostoiévski é de uma intensidade inigualável, marcada por tintas carregadas que nunca cedem ao conforto do tom ameno. Cada frase parece escrita para atravessar o leitor, expondo-o à dor, ao medo, à culpa e à redenção como experiências literárias vivas. Essa força verbal, que mistura o sublime e o grotesco, cria uma atmosfera de densidade emocional que não admite indiferença. Dostoiévski não economiza na construção de cenas que vão do claustrofóbico ao transcendental, utilizando-se de repetições obsessivas, interjeições abruptas e descrições pungentes para imergir o leitor no turbilhão interior de seus personagens. Conhecer gramática e linguística amplia a experiência com seus escritos, porque vemos com lente de aumento os contorcionismos linguísticos que ele era capaz de operar. Em “Crime e Castigo”, a linguagem é tão cortante quanto o machado de Raskólnikov, e cada palavra parece destinada a abrir uma ferida moral no coração de quem lê.

Por trás dessa intensidade está a crença de Dostoiévski em seu papel profético, uma característica que ele compartilha com muitos de seus contemporâneos na literatura russa. O autor não via sua obra apenas como um exercício estético, mas como uma missão quase messiânica de revelar as verdades mais profundas da alma humana e da sociedade. A literatura russa, como um todo, segundo Otto Maria Carpeaux, carrega esse peso de engajamento, de ser não apenas espelho da realidade, mas também catalisadora de mudanças morais e sociais. Dostoiévski se via como um cronista espiritual de sua época, alguém destinado a expor as fissuras éticas do mundo moderno e a propor, ainda que de forma trágica, caminhos para a regeneração.

Na Rússia, “Crime e Castigo” ocupa um lugar central no currículo escolar, sendo lido por estudantes já no que seria, no sistema educacional brasileiro, os anos finais do Ensino Fundamental. Mais do que um exercício literário, essa leitura é encarada como uma ferramenta pedagógica de imenso valor. O romance não apenas ensina os jovens sobre as consequências devastadoras do crime, mas também os desafia a desenvolver empatia por aqueles que caíram em desgraça. A figura de Raskólnikov, com sua combinação de culpa corrosiva e desejo de redenção, é utilizada para provocar uma reflexão sobre moralidade, justiça e compaixão. Essa dupla missão pedagógica — de afastar do crime e aproximar da compreensão — é parte do legado único da literatura russa, que não separa a arte da vida, mas as entrelaça de maneira indissociável.

Ler “Crime e Castigo” é um exercício de humanidade. Ao acompanhar o tormento de Raskólnikov, somos forçados a confrontar nossos próprios julgamentos, nossas certezas e fragilidades. A obra nos expõe à complexidade do ato humano, onde o bem e o mal nunca são absolutos, mas convivem em camadas contraditórias. Essa exposição às profundezas da alma humana nos torna mais sensíveis, não apenas aos personagens fictícios, mas às pessoas ao nosso redor. A empatia, que Dostoiévski cultiva com maestria, é talvez o maior presente que ele oferece ao leitor: uma visão ampliada do outro, despida de simplismos e pronta para acolher as nuances da vida.

A obra cumpre, em cada leitor, um ritual de transformação. Não é possível sair ileso de sua leitura, pois o texto, com seus dilemas éticos, toca as fibras mais íntimas do ser humano. Ele nos desafia a questionar nossas ideias de justiça, a refletir sobre o peso de nossos atos e a reconhecer a possibilidade de redenção, mesmo nas circunstâncias mais sombrias. Dostoiévski nos presenteia com perguntas que ecoam muito além da última página, deixando-nos mais humanos, mais conscientes e mais vivos.

As traduções de “Crime e Castigo” para o português, feitas por Paulo Bezerra e pelo casal Nina e Filipe Guerra, são amplamente reconhecidas como as melhores versões da obra em língua portuguesa, cada uma por suas qualidades únicas, mas todas com a mesma capacidade de capturar a intensidade e profundidade de Dostoiévski.

Crime e Castigo

A tradução de Paulo Bezerra, amplamente respeitada no Brasil, se destaca pela clareza e pela precisão técnica. Bezerra tem uma notável habilidade em transmitir o espírito da língua russa sem sacrificar a fluidez e a naturalidade do português. Sua tradução consegue refletir a complexidade filosófica e psicológica da obra de maneira acessível ao leitor brasileiro, sem perder a densidade do original. Ele sabe como preservar o tom dramático e, ao mesmo tempo, a beleza da linguagem, tornando-a uma leitura envolvente e fiel ao autor russo. Sua abordagem técnica, unida a uma sensibilidade literária refinada, garante que o leitor possa vivenciar a profundidade existencial e as tensões morais presentes no romance, sem se perder em construções complexas.

Por outro lado, a tradução do casal Nina e Filipe Guerra, vinda de Portugal, traz uma outra riqueza à obra. Conhecidos por seu domínio do português e pelo rigor literário, os Guerra possuem uma habilidade singular de refletir as camadas emocionais e filosóficas do texto de Dostoiévski, preservando as sutilezas do estilo do autor russo. A tradução deles se distingue pela sensibilidade poética e pela manutenção de um ritmo que ressoa com a grandiosidade da obra, ao mesmo tempo que respeita a sonoridade do idioma português. A escolha das palavras e a forma como os diálogos são conduzidos transmitem não só a densidade do pensamento de Dostoiévski, mas também a dramaticidade das situações. A tradução de Nina e Filipe Guerra é admirada por sua capacidade de capturar a tensão interna dos personagens e a profundidade emocional de suas crises existenciais, sem comprometer a compreensão do leitor.

Ambas as traduções, cada uma com sua peculiaridade, conquistaram o reconhecimento unânime por sua qualidade literária e fidelidade ao espírito do livro. São exemplos perfeitos de que uma boa tradução é mais do que apenas uma transposição de palavras, mas uma recriação de um universo literário, mantendo intacta a intensidade que Dostoiévski imprimiu em sua obra. Essas duas versões se destacam como as melhores em língua portuguesa, oferecendo aos leitores brasileiros e portugueses a oportunidade de vivenciar a obra de maneira plena e enriquecedora.

A leitura desse clássico é um convite à imersão nas complexidades da alma humana, desafiando-nos a confrontar nossas próprias crenças e limitações. Sua obrigatoriedade se justifica não apenas pelo seu valor literário, mas pela capacidade de transformar o leitor.

Fonte: Revista Bula.

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